quarta-feira, 31 de julho de 2013

Terceira versão para Quatro pães e uma cebola

Quatro pães e uma cebola (autor desconhecido)

Marlinda parou o carro pela quinta vez no curto percurso do trabalho até em casa. Engarrafamento na pequena cidade onde vivia não era algo comum. Culpa desse maldito circo, pensou. Conseguiu, após o dobro de tempo que gastava comumente, chegar em casa. Sentia-se exausta. Aguardava ansiosamente sua merecida aposentadoria após anos e anos de trabalho. Não que não gostasse do que fazia. Não era isso. Apenas sentia que sua juventude já havia passado e era hora de ficar em casa, lendo, apreciando a companhia dos filhos e dos netos. Era o que planejava para seu futuro.
Após um banho quente e uma refeição rápida jogou-se no sofá e ficou olhando para a TV sem prestar muita atenção à programação. Maldito circo!  Por conta dele havia perdido horas preciosas do seu tempo presa naquele engarrafamento estúpido em uma cidade que nem  trânsito tinha,  pensou ainda antes de adormecer no sofá. Acordou sem saber quanto tempo havia passado com o som estridente da companhia soando desesperadamente. Pensando que era um dos filhos em alguma visita surpresa abriu a porta ainda sonolenta e ficou pasma, parada, sem reação com o que via. Alfedro estava parado na porta, com aqueles mesmos olhos que conhecia tão bem. Mesmo tendo se passado quase 20 anos ela não tinha como esquecer. Não sabia o que dizer, ficou parada, olhando como se visse um fantasma. E na verdade era mesmo um fantasma. Ele  rompeu o silêncio:
----- Desculpe, aparecer assim, depois de tanto tempo... Mas eu estava na cidade e quis saber de você e dos meninos...
Ela continuava muda sem conseguir emitir um som sequer. Olhava pra ele e não conseguia entender direito o que via. Mandava o homem sumir ou convidava para entrar? Não sabia. Continuou olhando sem proferir palavra. Suas mãos tremiam.
------ Sei que você deve ter raiva de mim e eu mereço mesmo que tenha, mas queria te explicar...
Ela continuava muda. Explicar o que após 20 anos, meu Deus? Enlouquecera? Tentou falar mas a voz não saiu. Ele falava rápido, baixo e sua voz parecia triste. Ela via sua vida passando pelos olhos... Casaram jovens, muito jovens, cheios de sonhos e planos. Logo vieram os filhos, gêmeos. A vida começou a apertar. O parco salário de professora dela e os ganhos incertos dele que tocava na noite não davam conta do orçamento doméstico. Precisavam sempre recorrer às famílias de ambos para se sustentarem e aos filhos. Mas iam levando a vida, sem luxos. Ela trabalhando sempre e cada vez mais e ele sonhando com uma vida de artista que um dia viria, dizia. Tocava violão e cantava. Bem até, ela achava. Um dia, quando os meninos estavam prestes a completar 7 anos e ela preparava um almoço de domingo para a família, com direito a sobremesa e tudo, ele saiu para ir ao mercado e comprar algumas coisas que faltara para a execução da tarefa. E nunca mais voltou. Ela havia procurado por todos os lugares, hospitais, prisões... Dera queixa à polícia que também procurou por um tempo e depois desistira.  Alguns diziam terem visto o marido entrando em um carro, outros pegando um ônibus na rodoviária da pequena cidade. Ela procurou por muito tempo. Por muito tempo esperou que ele desse notícias. Seguiu assim durante anos. Ninguém sabia. Parecia que o homem havia desaparecido no ar, se volatizado. Sofreu, ficou doente, quase morreu. Mas tinha os filhos. Precisava ser forte. Continuou trabalhando e cuidando deles. Com o tempo as coisas se ajeitaram. Os meninos eram ótimos, estudiosos, disciplinados. E a vida foi seguindo. Às vezes alguém lhe perguntava pelo marido. Não sabia. Não tinha a mais remota idéia do que poderia ter acontecido. Criou os filhos, viraram gente de bem. Estudaram, tinham boas profissões, casaram, tiveram também seus filhos e ela continuou ali, na mesma casa, trabalhando como sempre mas com a vida mais tranqüila graças à ajuda recebida deles.
Ela não sabia o que dizer e ele foi falando pelos dois;
----------Fui embora aquele dia porque não agüentava mais. A vida passava e eu não conseguia sair do lugar. Estava envelhecendo, precisava fazer alguma coisa. Aí soube que na cidade vizinha tinha um circo. Achei que era bom pra começar. E fui embora com eles. Continuo no circo. Depois desse tempo todo voltamos aqui para uma temporada... Sempre quis saber de você e dos meninos mas achei que era melhor não deixar nó com o passado... Recomecei... E... não sei... fale alguma coisa por favor...
--------- Sua mãe, ela conseguiu dizer com os olhos doloridos, segurando as lágrimas, sua mãe quase enlouqueceu sem saber de você... Seus filhos não se lembram do rosto do  pai... E eu? Quase morri de dor e desgosto. Perdi noites de sono imaginando o que teria te acontecido, se estava vivo ou morto, se...
------ Eu sei, eu sei, por isso vim pedir perdão. Não quero nada, só ouvir que você me perdoa... Preciso disso... E quero que saiba que você foi a pessoa que mais amei em toda minha vida... Mas... eu precisava tentar...
Ela olhava. Os olhos doíam. O peito mais anda. Angústia. Mas via que estava sendo sincero. Ela o conhecia bem. Sabia também que era apenas um homem egoísta. Não era um homem ruim, apenas egoísta.
------ Você saiu para comprar quatro pães e uma cebola para eu terminar o almoço, ela disse como se estivesse em um sonho. Sorriu, um sorriso muito triste mas carregado de perdão. Ele compreendeu. Ela fechou a porta, entrou e por fim pode chorar. Um choro de dor, certamente, mas  muito mais de alívio.

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